(“Amizade e traição”)
[o voyeur](*)
Robson
Aguiar
Em primeiro lugar, me apresentarei. Meu
nome é Alexandre, tenho 28 e pertenço ao time dos solteiros, o que não quer dizer que seja solitário – muito pelo contrário. Costumo ser
taxado de bon vivant: dediquei boa parte de meus anos à arte de conquistar
mulheres casadas – minha ocupação principal. A esse respeito, deixo claro que as solteiras me atraem
pouco, pouquíssimo, pois as condições da conquista são
muito favoráveis e os desafios quase inexistentes. Nunca quis trabalhar, mas
tive de ceder à imposição
familiar e passei a prestar medíocres consultorias no mercado hoteleiro de
minha cidade. Dos males, o menor: além de me remunerarem – o que considero um
escárnio! – e não
ter horário fixo, meus
pais deixaram de vigiar-me e fiquei livre para a prática de atividades mais
interessantes. Meu maior e único amigo se chama Vilaça. Em respeito à igualdade de direitos –
ao menos neste despretensioso conto -, deixarei que ele próprio se apresente.
Podem me chamar de Vilaça, conforme avisou Alexandre, muito embora meu
primeiro nome seja Roberto, coisa que poucos sabem e que, aliás, não terá
utilidade alguma para a história que aqui se conta. Sou mais velho que Alexandre,
e já há alguns anos divido minha vida entre Paraty, nossa pequena e histórica
cidade, e a capital, onde advogo com muito sucesso no ramo do Direito
Tributário. Entre meus clientes figuram algumas das pessoas mais influentes do
Rio de Janeiro, condição que me proporciona inimagináveis sucessos na carreira.
Casei-me com Lorena, um ano mais velha que eu, morena de olhos castanhos claros,
cujas curvas não desmentem ter nascido na Zona Norte carioca. De cada dez
homens, dez a querem. Nunca acreditei em sua jurada fidelidade, pois não sou completamente
ingênuo, mas não acreditava que suas aventuras chegariam ao ponto de abalar
seriamente nossa aparente harmonia.
Vilaça era, portanto, meu melhor e único
amigo. Não uma amizade frágil, mas uma relação nascida na infância, quando
éramos pobres e felizes. Crescemos assim, quase a totalidade do tempo juntos,
dividindo os mesmos lugares, frequentando as mesmas brincadeiras. Todos sabiam
que onde estivesse Vilaça eu estaria por perto. Fôssemos irmãos, não seríamos
tão unidos. Saímos da infância para a juventude sem nos perdermos. A única
situação que nos afastaria seriam os estudos, já que Vilaça sempre se mostrara
mais capaz e esforçado. Lembro ter sentido um vazio imenso no dia em que ele
deixou Paraty para cursar Direito em uma grande faculdade pública. Apenas tive a
alegria de volta quando de seu retorno, formado, empregado e já casado com uma
mulher realmente perturbadora. Chamava-se Lorena. Não tive como deixar de me apaixonar
por ela instantaneamente, e digo sem sustos que nunca vira nas mulheres de
Paraty tamanho fascínio. Nenhuma de minhas namoradas e amantes – e não haviam
sido poucas – mostrara-se tão irresistível. Afora a amizade por Vilaça, o sentimento
que desenvolvi por Lorena fez-me regular frequentador do apartamento do casal.
Percebi desde o início a assiduidade impressionante
com que Alexandre passara a visitar minha casa. Não imaginava outra situação,
observando seu indisfarçado entusiasmo para com minha mulher. Conhecedor da
natureza masculina, não chegava a reprová-lo de todo - apenas esperava que tivesse
algum pudor e certo respeito por nossa amizade. Sei também que minha rotina favorecia
infidelidades, afinal muitas vezes passava somente os finais de semana em casa,
pois durante a semana o escritório da Candelária me impedia de retornar, e
acabava dormindo no Hotel Guanabara. Lorena me beijava nas partidas e chegadas,
dizia me amar como nunca amara antes qualquer outro. Não duvido de seu sentimento,
pois seu desempenho na cama não desmentia. Não entendo, contudo, sua disposição
para trair-me com aquele canalha que é, ao mesmo tempo, meu melhor amigo. Também
não compreendo sua crença de que as notícias sobre os encontros não chegariam
até mim – logo ela, tão esperta! Ou agia exatamente assim para me confundir?
Devo dizer que meu relacionamento com Lorena
começou de forma inesperada. Embora desejasse, não premeditara trair Vilaça, e
chegara mesmo a evitar, no início, estar a sós com ela. Ao mesmo tempo
precisava oferecer amparo, pois Vilaça me pedira que não deixasse faltar nada durante suas reiteradas ausências – e certas
coisas, ainda mais em cidades pequenas, só se resolvem com a intervenção
masculina. Ultrapassados esses breves cuidados, não mais resisti aos chamados
de Lorena e logo nos enredamos. Nas superficiais conversas, e nos inúmeros
orgasmos, nos entendíamos plenamente. Foram dias de suprema felicidade, tão avassaladores
que não havia espaço para a culpa que às vezes me atormentava – somente às
vezes, confesso.
Embora soubesse da infidelidade de Alexandre e Lorena,
a alegria com que minha mulher se dedicava e se entregava a mim não permitia que
tomasse qualquer atitude, e sentia como se a onda de alegria me desencorajasse
a modificar o que quer que fosse. Até ali caminhávamos os três em tênue
equilibrio. Não sei precisar em que momento as coisas saíram do controle, mas os
rumores da traição começaram a reverberar perigosamente e ameaçavam prejudicar
inclusive o sucesso do escritório. Clientes de grife me procuraram,
consternados. Contrariado, me vi obrigado a intervir, o que, devo esclarecer, não
estava em meus planos iniciais.
De uns tempos pra cá um importante
acontecimento fez com que refletisse: Vilaça andava amuado. Quando nos
reuníamos para falar das novidades, percebi que passara a se mostrar distante. Seus
e-mails e mensagens de texto, com notícias cariocas, rarearam. Sempre alegava
um pretexto para abreviar nossas conversas, deixando-me aflito e desconfiado.
Antes que qualquer tragédia se precipitasse, decidi afastar-me de Lorena. Sem dar
qualquer explicação, decidi viajar, passar uns tempos na casa de primos que
moravam próximo a Belo Horizonte. Precisava mesmo relaxar um pouco.
Estranhei a viagem repentina de Alexandre. Teria desconfiado
de meus planos? Impossível. A questão é que desde sua partida Lorena entristeceu.
Deixou de conversar, parou de fazer
unhas e cabelos, passava os dias de pijama. Sempre que a indagava, dizia
não haver nada, que a deixasse quieta. Imaginei poder fazê-la concentrar-se de
vez em nosso casamento, no filho que ainda não tínhamos, distrair-se com os
móveis novos que mandara vir do Rio, mas nada a animava. Nada a animava. Vivíamos
dias modorrentos.
O mês passou e não pude estender a
temporada na casa de meus primos, pois estes já não escondiam o incômodo de
minha presença. Exatamente no dia em que voltei a Paraty tive a alegria de encontrar
Lorena em frente à Matriz. Cumprimentei-a e pude notar que nossos olhos
acenderam. Mais que instintivamente nos separamos para nos juntarmos em sua
casa, onde nos amamos com fome. Horas depois, quando enfim tivemos a oportunidade
de conversar, Lorena me falou dos dias entediantes. Disse-me que ficara com o
coração apertado, ansiosa por notícias minhas. Disse-me que estava certa que
Vilaça não desconfiava de nada, e que merecíamos, os três, sermos felizes. Entre
risos e gozos comemoramos - o tempo aparentemente
hipnotizado.
Logo soube do retorno de Alexandre à cidade, o que
significava sua volta à minha casa para rever Lorena. Na primeira semana do
inverno, ao final da tarde de sexta, cheguei à cidade e resolvi chamá-lo. Não
podia adiar mais uma vez a decisão – era preciso resolver este caso. Pedi que Lorena
se arrumasse e ficasse bem bonita, pois teríamos uma noite especial. Avisei da
presença de Alexandre. Enquanto isso preparei o cenário, há muito tempo
arquitetado. Meu perfeccionismo crônico se acentuava nessas horas.
Quando recebi a mensagem de texto do Vilaça,
passei a suar frio: descobrira tudo, ou apenas queria matar saudade dos velhos
tempos? Sua mensagem era enfática, e não poderia recusar. Era tal minha inquietação que, no caminho,
resolvi ir até o cais. Olhos fixos no
mar, sem que percebesse comecei a narrar, a voz nervosa, toda nossa história.
Fazia o papel de pecador, e a natureza era meu confessionário. Não sei se por
artimanha do destino, o mar foi aos poucos se acalmando, como se a dizer que ficasse tranquilo,
pois nada de ruim aconteceria. Tranquilizei-me e abandonei o cais convicto de
que viveria ainda muitas histórias ao lado de Lorena. Saí de lá de ânimo
renovado, convencido de que o encontro convocado por Vilaça serviria apenas
para celebrar nossa amizade.
Recebi Alexandre com polidez, mas sem entusiasmo.
Assim que ele se acomodou, chamei Lorena até a sala e disse, firme:
- Quero que façam amor agora, na minha presença. Quero
que fiquem à vontade, como se eu não estivesse aqui. Irei apenas olhar. Sei bem
do desejo que sentem um pelo outro. Não se envergonhem. Abrirei o sofá cama para facilitar as coisas.
Podem começar.
Confesso que a situação inusitada me
intimidou, mas logo percebi que Vilaça não estava para brincadeiras. Após
demorar-me um pouco despi toda a roupa com naturalidade. Lorena estava
entorpecida, em estado de choque, e tive de ajudá-la a tirar seu vestido.
Embora soubéssemos exatamente o que fazer, tivemos dificuldades para os
primeiros movimentos, dificuldades que foram aos poucos ultrapassadas até que
passamos a nos amar loucamente, como se não estivéssemos sendo observados.
Falávamos palavrões e vulgaridades e nos entregávamos com fervor, sem que Vilaça
esboçasse intenção de nos interromper. Posso arriscar a dizer que notei nele
certo prazer e cheguei mesmo a acreditar que aquilo poderia renovar nossa
intimidade em um novo patamar. Estaria Vilaça apreciando novas formas de
experimentar a sexualidade? Não sabia
exatamente o que pensar, mas lembro que em um dado momento me senti tão à
vontade que convidei Vilaça para tomar meu lugar, sem que ele assentisse. Após Lorena
e eu atingirmos outro orgasmo conjunto, lembro que Vilaça ordenou que nos
vestíssemos.
De tal forma eu era senhor da cena que poderia
determinar o quer que fosse a Alexandre e Lorena. Como planejara, eu os
dominava inteiramente. Agora que lhes oferecera o que mais apreciavam, podia dar
cabo daquilo. Tiraria deles aquelas sensações intraduzíveis. Sem demora, dei
dois tiros fatais em cada um. Acomodei os corpos com dificuldade na banheira da
suíte. Cuidaria deles depois. Acendi um cigarro, enchi uma taça de delicioso bordeaux,
e passei a perambular de um lado para o outro da casa, sem ter a quem confessar
meu sucesso.
Rio de Janeiro, 3 e 4 de julho de 2013.